domingo, 23 de novembro de 2014

Comi fios de seda.

Tenho varias vidas dentro de mim.
Acho que não cabe mais nenhuma, mais nenhum ser ou nuance. Mais nenhuma variante de pessoa, de personalidade. nenhuma subtileza.
Vivi várias vezes e morri muitas mais.
As minhas, as dos outros. As que vivi com os outros.  As que os outros viveram na minha.
Como uma casa aberta, com as portas abertas, com as janelas escancaradas. Com a brisa a correr as divisões de cal e frescos esbatidos. Com o desgaste a adivinhar-se e os risos a escoar pelas frinchas da madeira viva.

Vivi várias vezes e morri muitas mais.E sobre essas vidas, no entanto, tenho a distancia dos imbecis.
Mas nao tenho a sua felicidade ingénua.
E roo a inveja devagar, como a lenha da madeira viva que se mata na lareira.

Bordaram as rendas na muselina da memória, devagar, impregnando de fios a frágil treliça. Iam pesando essas curvas feitas de pontos. Só se veem os bordados, essas flores, essas ramas, esses passaros e abstractos traços que tudo unem, pontuados de lantejolas e pailletes, em brilhos mágicos e fantasiosos.
Só se veem os bordados, fazendo desparecer a musselina que os sustentam.
Ao ranger da madeira, foram perdendo o matiz dos fios, da seda. Pelo uso ou pelo sol a que foram expostos. Enegrecidos pelo pó. Ou meramente porque perderam a novidade.

Essas vidas bordaram-se na minha, que de tão fraca ou rica, se escondeu nos fios, que estrangularam a sua trama, ou esgaçaram a sua constância. Cedeu quando foi preciso, mas nao desapareceu. 

Terei obrigado as bordadeiras a dar-me os seus fios e pontos? Arrastei neste jogo de saber a resistencia e flexibilidade da torção da fibra? Sim, despontei por duro prazer outras vidas em novelos que bordei na minha vida, vivendo tantas vidas.
A musselina que se mostrava e esvoaçava nas janelas à vista de todos roçava a madeira que rugia sob as vidas a passar. Pareciam hienas re-comendo as carcaças que ainda se mostram como corpos, sob a sombra dos bordados a se entrelaçar e a ruir, e fechavam essa casa onde julgavam habitar.

Abrindo e revisitando os meus aposentos que nao mostrei, que só eu usei e que permaneceram intactos perante o tempo, senti a madeira viva, pulsante. 
Foi sempre um jogo, ou nao.
Vivi muitas vidas e quiça nao vivi a minha, mas morri tantas outras tornando-me mais vivo.



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