terça-feira, 25 de novembro de 2014

Caixas de cenas

No beco havia o ruído do despontar do dia. Madrugada. fim de dia para alguns, fim de noite para os que passavam ébrios, inicio de noite para apaixonados recentes. 

As caixas eram descarregadas com ruidosa agitação.
O derreter acidentado do gelo, arrastava odores do peixe fresco. Odores que os peixeiros diziam não existir porque não os sentiam.
Os robustos carniceiros carregavam as meias carcaças com odes de virilidade, refutando que era um trabalho árduo.
Insolentes e desafiadores, os motoristas acotovelavam-se no balcão do bar, comentando cada gesto, cada elemento e politicando as atitudes e cadências em hierarquias e razões.
 
Todos se decretavam como seres afáveis. Eram uma compleição celestial de cordialidade, amizades, gostos simples e desfrute desprovido de intenções. Diziam eles. 

Perpetuavam-se assim os ruídos do despontar do dia. Esse raiar que se repetia em cada canto do mundo, igual a todos, e que se bafejava de diferença. Repetia-se, ainda assim. 
 
Batiam a madeira das caixas em reboliço para a retirada, já desprovidas dos legumes que deixaram aqui e ali marcas de sumo de esmagamento, folhas arrancadas, e até uma ou outra peça mais pequena tinha rolado e depositava-se quase imperceptível na encosta do lancil.

Sou de um desplante criticado por, encostado a ombreira da porta de serviço, ver isto e exprimir no rosto e no gesto o que se me aflora. Seja certo ou errado, nem quero saber. Deixo-me ir, saboreio os poucos momentos que não estando na frente de clientes, me posso comportar indolentemente.
Já tenho a alma cicatrizada e as mãos endurecidas.

Identificava o fedor que caracterizava os peixeiros, que ripostavam a minha franqueza sob o filtro das escamas do seu dia a dia. 
Assim é, não os sentiam. Claro que à distancia e de olhos fechados, guiados, fariam a distinção de este odor entre outros, mas quando impregnados em si, esses odores desparacem-lhe na mente.  
A lota era o seu mundo e teria de ser o mundo de todos os viventes. 
Dizem-se de palato simples. São tão complexos como os carniceiros e motoristas. Simples se veem na sua  vida e tolda-lhes o olhar que desviam com propriedade gritada todas as outras simplicidades. 

Escamam as almas na procura da pele, desgastando a beleza dos seus laivos de prata e de mar que saltam perante os pregos, perdendo o significado e distinção. O que é um peixe sem as suas escamas? mais uma carne branca.

O sangue que respingou da vitela, é diferente no olhar à gota grossa da carcaça de um porco que se engrossou na bata do seu fiel carregador? mas será em todo diferente. 
 
Dizermo-nos simples refutando a nossa humana complexidade, ou assumindo a nossa complexidade tornamo-nos mais simples? 

Com a mesma perspectiva, continuei na ombreira da porta, desenrolando o avental até que virei costas já no silêncio daquele sujo beco já no dia claro.

domingo, 23 de novembro de 2014

Comi fios de seda.

Tenho varias vidas dentro de mim.
Acho que não cabe mais nenhuma, mais nenhum ser ou nuance. Mais nenhuma variante de pessoa, de personalidade. nenhuma subtileza.
Vivi várias vezes e morri muitas mais.
As minhas, as dos outros. As que vivi com os outros.  As que os outros viveram na minha.
Como uma casa aberta, com as portas abertas, com as janelas escancaradas. Com a brisa a correr as divisões de cal e frescos esbatidos. Com o desgaste a adivinhar-se e os risos a escoar pelas frinchas da madeira viva.

Vivi várias vezes e morri muitas mais.E sobre essas vidas, no entanto, tenho a distancia dos imbecis.
Mas nao tenho a sua felicidade ingénua.
E roo a inveja devagar, como a lenha da madeira viva que se mata na lareira.

Bordaram as rendas na muselina da memória, devagar, impregnando de fios a frágil treliça. Iam pesando essas curvas feitas de pontos. Só se veem os bordados, essas flores, essas ramas, esses passaros e abstractos traços que tudo unem, pontuados de lantejolas e pailletes, em brilhos mágicos e fantasiosos.
Só se veem os bordados, fazendo desparecer a musselina que os sustentam.
Ao ranger da madeira, foram perdendo o matiz dos fios, da seda. Pelo uso ou pelo sol a que foram expostos. Enegrecidos pelo pó. Ou meramente porque perderam a novidade.

Essas vidas bordaram-se na minha, que de tão fraca ou rica, se escondeu nos fios, que estrangularam a sua trama, ou esgaçaram a sua constância. Cedeu quando foi preciso, mas nao desapareceu. 

Terei obrigado as bordadeiras a dar-me os seus fios e pontos? Arrastei neste jogo de saber a resistencia e flexibilidade da torção da fibra? Sim, despontei por duro prazer outras vidas em novelos que bordei na minha vida, vivendo tantas vidas.
A musselina que se mostrava e esvoaçava nas janelas à vista de todos roçava a madeira que rugia sob as vidas a passar. Pareciam hienas re-comendo as carcaças que ainda se mostram como corpos, sob a sombra dos bordados a se entrelaçar e a ruir, e fechavam essa casa onde julgavam habitar.

Abrindo e revisitando os meus aposentos que nao mostrei, que só eu usei e que permaneceram intactos perante o tempo, senti a madeira viva, pulsante. 
Foi sempre um jogo, ou nao.
Vivi muitas vidas e quiça nao vivi a minha, mas morri tantas outras tornando-me mais vivo.