sexta-feira, 18 de julho de 2014

Ementa excepcional.

Numa mansidão invulgar, limpei as mãos no avental. Até eu me via lento.
Já tinha o trabalho feito e as facas afiadas.
Toda a mise en cene para qualquer banquete estava iminentemente pronta. Digo imenentemente pronta, pois não era necessaria nenhuma prontidão porque passava já grande parte da tarde e não havia vestigios de gente.

Na rua entrecruzavam-se passeantes a medo de se chegar ao restaurante uma vez que o tomavam por excepcional. Ainda assim, alguns a quem a idade, traquejo e segurança - ou bazófia - enchiam os pulmões, detinham-se na carta fixada na ombreira de pedra. Comentavam dignamente os pratos, o deleito que pressupunham, a habilidade da cozinha, e rematavam que aquele preço era certo dada a qualidade, a raridade, e certos de que seria um prazer opíparo um prato naquelas mesas.

Alguns espreitavam os vidros resplandecentes sob o sol, e de quando em vez, trocavam-se olhares e até sorrisos. Esses pontuavam raramente os meus dias. Faziam-me fantasiar sobre os comensais, os ingredientes, os odores, e o discurso corrido de fim de noite quando me afasto do campo bélico da minha cozinha onde batalho refeições sagradas para agradar e, me sento com eles. Deleitando-me a deixar-me ir.

Estava manso e ledo...numa quietude nostalgica. Os clientes eram os mesmos de sempre, os gestos repetidos, as palavras gastas.  Tive em mente faze-los enlevar a outros níveis, como de musica educá-los. Porém não passariam do mesmo, o seu paladar embrutecido - ainda assim em algo encantador - seria o  proprio limite em que se aninhavam.

Perceberá que os pratos excepcionais, não o eram mais. Para mim...necessitava de mais.
Fazer uma nova ementa para os mesmos era um caminho que ja tinha trilhado sem sucesso, aqueles paladares não exigem, nao debatem, não arrebatam.
Olhar os pratos com um novo entusiasmo era algo, que apesar de esforçado, não me saía. Já estivera perto, renovando os votos ao cebolinho, ao coentro e ao lagostín, mas rapidamente esmureci com a minha própria perícia.
Questionei-me se correria uma outra vez para desbravar outra cozinha, ou outras Cozinhas de sabores desconhecidos e não domados.E não me alentava.

E assim, passava os dias nessa mansarda que conhecia, e cada vez me via mais lento e manso a limpar as mãos suadas ao avental, com tudo pronto cada vez mais cedo e com maior eficácia... para preparar os pratos que não abandonava e que conhecia tão bem como o meu conforto conquistado e como a minha inquitude e insatisfação interior.


terça-feira, 15 de julho de 2014

qualquer resposta é boa.

na cinza penumbra da madrugada, lia os teus contornos com frieza.
entre o álcool que exalavas e o sentimento em que deambulavam as palavras e lágrimas, sobrevoava a incerteza de haver razão ou sentimento. jogavas contigo o jogo da brevidade e do imediatismo. não porque não sentisses, mas porque não sabias nada de sentimentos. a grandeza e a profundidade tinham um sabor que desconhecias mas do qual julgavas saber.
foram muitas as camas que penetraste e se calhar nalgumas perpetuaste alguns dias, mas poucas ou nenhumas aquelas em que lavaste a tua alma e em que enxugaste lágrimas alheias com as tuas já secas de tanto sofrer o alheio.
a vida já me correu pelas mãos evadindo-se de mim para ir viver a dos outros na minha alma. já me esvaziei de mim. já não estive. abandonei-me.
a frieza não é soberba nem supremacia. a frieza não é vazio ou distancia. a frieza é abnegação e abandono do meu sentimento. qualquer resposta é boa para perguntas inconsequentes e para questões profundas, quando estamos abandonados a receber qualquer resposta.