Maria ia com os seus limões e laranjas no cesto.
Ia pouco
formosa nos seus 47kg, e menos
segura do alto dos seus pequenos 1.63mt.
Estava magra e cansada, trabalhava na frutaria ha anos, mas com a crise que debandava nos telejornais, tinham dispensado o Pedro, que fazia as entregas. Era obrigada (quanto mais não fosse porque enquanto atendia os seus clientes não retirava o sorriso pálido e pueril do rosto) a fazer as entregas nas casas que lhes compravam citrinos, frutas exóticas e nacionais, das ilhas e do oeste.
Percorria a rua com ligeireza mas com pesar .
Pensava no Pedro, agora com o seu avental monogramado com a inicial da frutaria pendurado no cabide da entrada. Não teria a delicia das maças demasiado maduras a soltar a doçura a cada dentada. A verdade é que também não ouviria o roncar do dono na sala dos fundos.
O Pedro havia sido, ainda era, um dos grandes acontecimentos na vida de Maria.
No silêncio do trabalho da frutaria entreolhavam-se com cumplicidade. A cumplicidade que se havia construído por vários meses nos fugazes almoços que partilhavam, à vista de todos, mas sem que ninguém os visse realmente.
Sentavam-se ao sol, nas traseiras da frutaria, e olhavam o rio. Contavam um ao outro o que não haviam contado a ninguém. Pequenas fantasias e estorias, sobressaltos e medos, aventuras e recordações. Namoros que haviam tido, pecados inconfessáveis. Faziam perguntas emabaraçosas e provocações esteréis para chegar mais longe ou para simplesmente fazer corar o outro.
Riram de forma infantil e sorriram de forma demasiado adulta dadas as circunstâncias.
Maria era a rapariga para quem todos olhavam, pelo sorriso, pela facil presença tagarela que sempre mostrava. Era uma rapariga moderna. Aprumava-se todas as manhãs, desfrutava de frangancias elegantes depois do banho. Melhorava o seu ar dorminhoco com um pouco de maquilhagem, e caminhava altivamente. Sacudias as madeixas negras por cima dos ombros magros. Nunca mostrava fraqueza. Não queria ser vista como um despojo da vida. Protegia-se. Era mais fácil.
Pedro era o sisudo e cumpridor rapaz das traseiras, sobre o qual todos tinham uma perspectiva.
Aprumado, mas semssaboro, não levantava poeira ao andar no pátio. Era meticuloso ao ponto de colocar os pés das pêras rocha alinhados e os morangos ordenados por tamanhos. Silenciava-se ao ser chamado a atenção pelo dono da frutaria, como muitas vezes acontecia, mas Maria julgava que nesses momentos cantarolava algo gozão dentro da sua cabeça para não ouvir. Mas Pedro, mais do que nao querer ser visto como um despojo da vida, simplesmente não queria ser visto. Era mais fácil.
Maria era curiosa. Pedro mais do que ele proprio pensava, ou que todos podiam jurar.
Naquela hora de almoço, juntavam-se num mundo a que só eles tinham acesso. Um mundo imaginiário, que deixava o odor da sua insanidade a rastejar pela tarde até ao anoitecer, quando ruidosamente o gradão corria para fechar a frutaria, e quando eles desapertavam com lentidão e reflexivamente o avental monogramado.
Trabalhavam mais pessoas na frutaria, mas só eles é que trabalhavam lá, na sua visão.Voltavam as vidas reais que tinham na sua rotina. E uma vez atrás de outra, voltavam àquele mundo.
A vida moderna tinha-os obrigado à solidão de almoçar a correr, e tinha-os juntado na humanidade eterna pela necessidade de partilha.
E por um momento infimo, num
volt-face do destino (que de tão estranho acontecimento, pareceria um acontecimento premeditado e propositado)
a sua vida quotidiana pudera ter-se misturado, inbuído, inundado naquele mundo só deles imaginado.
Mas, como cobardes plenos de rectidão, mantiveram os dois mundos separados.
Maria ia pisando a calçada com o cesto a baloiçar os limões e laranjas, embrulhada no avental.
Maria ia com pesar e presa. Sorria fingida e vaziamente aos transeuntes.
Mal almoçava, acompanhara-se por outras pessoas, mas jamais partilharia o que o Pedro lhe havia levado.
Continuava a andar com altivez. Menor, agora que passaram anos.
Recordava infinitamente o rapaz.
Assombrava-lhe o rumo que o tinham tomado as suas vidas.
As maças já nao deslumbravam doçura ao entardecer. Para ela só havia agora a fragancia da ácidez dos limões que lhe recordavam as escolhas da vida, e o odor acre das laranjas que tinha escolhido com devota fidelidade.
Maria ia pisando a calçada com o cesto a baloiçar os limões e laranjas, embrulhada no avental.
Maria ia com pesar e presa, perdida no seu mundo imaginário, e seguia a sua vida moderna.
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