quinta-feira, 3 de julho de 2008

Músculos no rio

Estava a zombar o calor entre as varejeiras.
Nas velhas paredes sentia-se o suor dos poucos transeuntes como um eco, porque não corria ar e o odor estagnava-se nas nossas narinas.
Eram duas da tarde e tínhamos limpo as mesas dos clientes que não tinham aparecido.

Havia restos de vida nas ruas. Não era vida a sério. Eram os restos de ontem, de anteontem. Houve vida ali quando esteve mais fresco e a conversa fluiu ou o álcool atordoou o termostato corporal.

Tinha sido sério o caso. Houve barulho e polícia. Desmembraram a família porque nunca o fora.
O facto é que as coisas acontecem porque o cenário põe-se a jeito e têm de acontecer.
Aquilo fora uma desculpa. Amantes e dinheiro era clássico e ninguém desconfiaria ou duvidaria. Era passional, e portanto não tinha de ter lógica ou justificação oficial no verbo da maledicência, ou do mero entretém quando se tornasse público.

Também o forçaram a ser público, até ao pormenor sórdido das quantias pagas nos crimes.

Não se importavam. Não queriam saber. Eram co-habitantes. Não família. Nem aparentados. Parece-me até que nem conhecidos.
Mas o embuste social era perfeito: muitos, amigos, sempre juntos, animados.

Quando se importam não se juntam para sentir saudades e para ter o que contar.
Quando tive coração era assim.

Descascava a fruta com o cutelo porque estava mais à mão e deixe-me ficar a pensar nisso.

Se se importassem entre eles, deixavam - depois de todo o alvoroço - correr até às últimas importâncias todas as vinganças e afrontas. Porque achamos que tudo o que lhes vai acontecer é merecido como consequência para quem nos infligiu. especialmente se for "família".
Tretas.

Perdoa-se? Não. Dá-se com mais força. Porque também está a doer.
O ser sacia a sua fome com a fome de quem lhe roubou a comida.

Se há recuo é porque o protocolo exige esse fingimento...e de forma a parecer sentido.

Não existiam como família porque se rivalizavam em todos os seus actos. Até à ultima instância. Ou até nem isso. mas era assim que os obrigavam a ser.
E os outros membros tiraram partido e lados, barricaram-se de um dos lados em vez de se permitirem estar no campo de batalha desarmados e expostos às respingas de sangue alheio, mas também seu.


Desmembraram a família porque nunca o fora.

Ficaram felizes para sempre.

Boiava no rio pardacento uma massa de músculos.
Fora uma vaca que morreu de calor.

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