"Os vincos da pele acusavam o
cansaço de demasiados fusos horários, demasiados quilómetros percorridos.
Percorridos e perdidos.
Na garganta e na voz surgia rouco o
travo do ar condicionado dos hotéis, dos carros e das salas de reunião.
No olhar perdido nos cubos de gelo,
a nostalgia dos jantares em lugares exóticos, a certeza de uma vida fora daquele ritmo frenético e vazio.
Estava sentado ao balcão no bar do
hotel. Já era tarde.
Como pano de fundo, a cidade
oprimia as janelas que tentavam libertar aquele cenário deliciosamente decorado.
Havia caras de muitas culturas,
raças, tendências, credos naquele tão grande bar, mas tão intimo espaço.Cada cara, estava fechada em si
mesmo. Mesmo que algumas delas estivessem acompanhadas.
Lá fora a humidade e o calor
sufocavam.
O fumo que via seria dos tabacos
das chichas e do ópio se ainda se fumasse nestes sítios.Não, o fumo era do entorpecer dos
sentidos. Não sei porque via isto, nem como o fazia, mas via que cada corpo destilava vapor, odor,
calor, sentimentos, repressões, desejos numa neblina turva. A sala estava densa….
Entre a adrenalina da aventura e a
falta de coragem, estava paralisada ali.
Não sabia sequer o que fazia ali,
como a minha cabeça tinha fantasiado este momento tão ao pormenor.Senti o pelos do corpo eriçarem.se
e o racional empurrar-me para a arena.Afinal, tinha chegado até ali.
O desejo há muito reprimido, o
prazer adiado vestiam-se de ocre.
Via-me entre as sombras reflectidas
nos espelhos da sala.
Sentia sede.
O vapor que saía da minha pele era
quente, húmido.Estava cansada, e não sabia que o
ia encontrar. Não sabia o que dizer. Não sabia o que ia ouvir.
Tentei recolocar-me. Abstrair-me
deste assoberbamento.
Aclarei os sentidos, mas não
conseguia ver nada mais daquela figura.
Estava ali sentado.A camisa impecavelmente branca
denunciava um dia sobre o corpo.A lã fria e o bom corte italiano,
mantinham a estrutura do casaco mesmo no final da batalha. Os botões de punho pontuavam de luz
e brilho esta cena parda. Não sei onde estava a gravata, se
ali estivera, nem o tom dos sapatos.
Via a perna flectida no banco alto.
As mãos telintavam o copo.
E eu não saia dali. Não conseguia convencer-me a
entrar.
Principalmente porque não sabia
como sair.
Procurei uma saída de emergência,
perscrutar alguém que me pudesse acudir se aquilo tudo fosse um desastre ou corresse terrivelmente
mal.
Como um afogado: antes de mergulhar
no abismo, fascina-se, mesmo sabendo que pode não conseguir nadar para a segurança depois do
torpor do impacto.
Não podemos prever a nossa
capacidade depois de mergulhar.
Há um dia que vou sair da estrada,
que tenho um acidente, que me desconcentro.
A velocidade, o abismo, o vicio, o
abismo, sempre me atraíram. A falta de coragem sempre me contiveram e me mantiveram viva.
Continuava pregada ao chão de
mármore. Parecia agora mole e lodoso debaixo dos meus pés…Segurava-me. A verdade é que estava a discorrer
todas as desculpas para não me mover. Ou para rodar nos calcanhares e voltar a entrar no elevador, mas
desta vez descer a cave, meter-me no carro e fugir dali a toda a velocidade. Ficaria noites sem dormir.
No arrependimento, castigar-me-ia. Creio que me vou punindo muito do
que faço e do que evito fazer. Uma punição que não me dá prazer, que me desfaz.
Mentalmente, recordava como tinha
deixado o quarto no 9.º piso. Como era. Como entraria de novo lá.
Enchi-me de coragem. Esvaziei-me
dessa coragem.
O fumo continuava a pairar. As silhuetas de fumo dum cinza rosado
saiam da pele perfeita de uma magra asiática que deslizava entre as mesas a servir os hospedes. Baixou-se para apanhar um lenço de
uma africana que ria continuamente. Viu-se-lhe a pele do dorso. O africano, que não ria, mas fazia
rir debaixo da mesa, entesou os músculos ao ver a pele imaculadamente
pálida da asiática. Ela sabia. Desfrutaram em poucos segundos de
um entreolhar que penetrava os corpos. Gozaram.
E eu sentia toda aquela
reverberação. Tínia. Latejava-me a pele.
E a minha vibração foi sentida por
ela. A minha ânsia, a respiração entrecortada. Deslizou até mim, e convidou-me com
o suave gesto da cabeça a entrar. Estaria ali há segundos ou longos
minutos.
O tempo absoluto não interessa mas
o tempo vivido.
O negro olhou-me. Senti os tambores
ao longe. Senti o odor da sua selvajaria.
A africana continuava a rir,
abandonada a si.
Tinha que entrar, o orgulho
imperava e eu não podia entregar-me a aqueles olhares que me questionavam a minha ousadia.
Já tinha feito adivinhar que tinha
vontade. Que era curiosa. E no meio de uma valentia infantil, quase fanfarronice, tinha feito promessas
veladas mas explícitos sentidos.
Caminhei pesadamente mas de forma a
não ser ouvida.Senti a respiração do negro
enquanto passava por ele. Senti o odor da negra.
A empregada, sob a farda negra,
pulsava num suor imperceptível e perseguia-me com o olhar. Dentro da pele rasgada dos olhos, ardia.
Não sei se estavam estupefactos por
ter avançado, pela coragem ou pela inconsciência e o medo transbordarem dos meus gestos.
Não sei se me queriam. Caminhei
devagar.
Quando consegui levantar o queixo,
uma mão grossa agarrou-me o pulso e sacudiu-me. Dei um gemido inconsciente e olhei para um homem,
moreno, queimado pelo sol, de meia idade e olhos doce e perdidos no álcool que
inadvertidamente se metia com todos
procurando companhia.
Um tuareg urbano. Um nómada. Perdido. Sem rumo. Atravessando o deserto
urbano. Perdido.A asiática prontamente envolveu o
cliente e libertou-me daquelas tremulas algemas humanas e como que a sibilar me soprou para seguir.
Tocou-me a pele e era como uma
víbora.Fria, suave, deslizante, tentadora.
Ericei-me e recuei.Mas mais rapidamente andei até ao
bar. Parei a menos de meio metro.
Uma brisa vinda de não sei onde,
provavelmente da minha imaginação e medo, voou com o meu cheiro, o meu fumo até ele. Pressentiu-me mas não
me adivinhou.No momento em que levantava o olhar
pesado, Toquei-lhe na mão.
Senti nesse toque a temperatura e a
textura da pele. Adivinhei as veias e tendões. Ele sentiu-me o nervosismo.
Naquele segundo sabíamos porque estávamos
ali.
Bebemos os dois malte.
Repetidamente e de forma abrupta. Para atordoar.
Aqueles tragos eram o bilhete para
a viagem.
Nunca soube, nem saberei o que ele
sabia.
Mas sabia que naquele segundo sabíamos porque estávamos ali."